Monday, March 13, 2006



A GELADEIRA JÁ SABIA


Hoje olhei para dentro da minha geladeira e percebi um espelho por lá. Olhei fundo em seus ovos olhos gelados e hostis, tudo muito sozinho. Olhei porque uma luz se acendera enquanto eu lhe abria. O clima estava meio frio, dias de inverno por aqui, pensei. Alimentos mudos comemoravam em discreta elegância a nova moradia, finalmente tinham saído da prateleira daquele supermercado imenso, mas tão imenso que produto nenhum via futuro lá dentro. Isso não devia levar esses pobres alimentos a lugar nenhum. Pelo menos era o que se comentava nas frias estruturas onde os alimentos agora viviam, por acaso a minha geladeira. Ontem os EUA sofreram um ataque terrorista na ilha de Manhattan e também em Washington. Então, pude perceber que os alimentos estavam bastante preocupados. O que seria do suco de laranja industrializado? Queriam eles, os alimentos, protestar. Teve até o colapso de papel, que aqui em casa chamam de salsicha que ameaçou apodrecer em mofos, fazendo o clima ficar frio, caso os industrializados não voltassem mais. O argumento desesperado de tal alimento era pra ele, muito óbvio. Os industrializados davam ordem à minha geladeira e eu nem sabia de nada. Porém, os boatos com aromas diziam que, na verdade, essa tal salsicha tinha uma certa queda pelo ketchup gringo que chegou aqui em casa na última compra que fizemos lá no Carrefour. O supermercado francês que me perdoe, mas a minha geladeira está cada vez mais americanizada. Sem contar as pragas que alimentei com tanto cuidado inconscientemente ao longo destes anos. Eles, os ímãs: coloridinhos, pequeninos, tão inocentes, se multiplicam a cada dia que passa fazendo com que minha geladeira vire um tremendo outdoor, um verdadeiro complô publicitário que poderia competir com qualquer muro desses grandes que vemos pela cidade afora. A diferença se constitui no pagamento do merchandising. Ninguém apareceu ainda aqui em casa pra me pagar o pedaço cedido à publicidade de minha geladinha geladeira. A sociedade geladeirensse amiga dos alimentos dependentes de conserva está animada. A cada ano que passa os produtos ficam cada vez maiores, o que relativamente resulta em um aumento volumoso da expectativa de vida de uma sociedade geladeiral, já que, quanto maior o produto, mais ele vai demorar a ser gasto. Isso, claro, tirando festas e datas comemorativas, onde os humanos são capazes de devorar em um só dia umas três ou quatro sociedades geladeirais. Em compensação, um curioso fato tem tirado do sério a parte esquerda do meu aparelho doméstico: a desigualdade social. Atribuída ao fato de que, a partir do momento que todos os produtos têm seu preço, uma maionese russa cara se acha no direito de permanecer bem no centro da geladeira, só porque custou mais do que as verduras, por exemplo. Essas bichinhas, e não importa se é brócolis ou vagem, tanto uma como a outra, geralmente moram nos famosos escombros geladeirais, as gavetas. Esquecidas, muitas apodrecem lutando. Dizem que é preciso muita embalagem se você quer se dar bem por aqui. Tudo muito louco, e eu nem tava com fome. Abri a geladeira pra matar o tédio. Os alimentos me olhavam como se eu fosse um fenômeno natural da vida deles. O ato nosso de consumo, para os alimentos, é ao mesmo tempo a vida e a morte. Eles sabem que quando saem das prateleiras de um supermercado, estão indo para um lugar especial, mas isso também significa que a morte está por vir. Por isso que a geladeira é também um lugar sagrado pra eles, os alimentos. Fiquei pensando na minha lata de leite condensado, que como a maioria daquela população, vai morrendo aos poucos. E que daqui a pouco outras latas, iguaizinhas a essa vão vir morar neste meu caixote gelado moderno, é só esperar pela próxima compra do mês. Como no mundo.